GIRAUD [Paul] [Trad. LARVANCHA (Pedro Alemo)].— MOUROS // CONFUNDIDOS // POR HUMA DONZELLA CHRISTÃA. // RELAC,AÕ, // Que contém a prizaõ, cativeiro, liberdade, e naufra- // gio de // CONSTANC,A COLIVA // no Porto de Marselha, // ‘COMPOSTA POR HUM’ // RELIGIOSO // DA REDEMPC,AM DE CATIVOS, // Que depois de duas vezes impressa em Marselha, se // traduzio de Francês em Herpanhol, e a deo á luz // hum irmão do P. Fr. Manoel Merino, que tambem // naufragou no dito Porto: // ‘E de presente traduzida em Portuguez.’ // [pequena vinheta] // LISBOA: MDCCLXI. // ======= // Na Officina de Ignacio Nogueira Xisto. // ‘Com todas as licenças necessarias.’ In-8.º de 16 págs. B.
Paul Girard, frade francês da Ordem da Santíssima Trindade, relata, com minúcia, a tumultuosa vida de Constança Coliva, dando ainda notícia do “naufrágio, e morte do nosso muito amado Irmão o Padre Fr. Manoel Merino, e da desgraçada donzela Constança Coliva, de nação Grega […]”:
“Tenho em meu poder desde este proximo mez de Agosto huma exacta, e fiel relação da prisão, cativeiro, e resgate de Constança, cujas circunstancias mais singulares saõ estas. Constança Coliva nasceu de pays livres, e nobres em 3. de Fevereiro de 1725. conforme o Calendario Grego, em huma aldeia chamada Santa Maura, que fica nos domínios da República de Veneza. Seu Pay Basilio Coliva e sua mãy […] que entaõ seguiaõ o cîsma, que os Gregos professaõ. Apenas chegava Constança aos sete anos de sua idade, quando Ali Arraes pirata de Tunes […] intentou, e conseguio cativar Basilio, e a todas as pessoas, que em sua casa havia; pois andando a corso com duas fragatas nas costas de Santa Maura, huma noite saltou em terra com Mouros bastantes, e chegando á casa de Basilio […], chamou, para que lhe abrissem a porta, dizendo que era seu compadre, e queria que o hospedassem. Conhecerão pela voz, que era elle; e como nas sabia que renegara, lha abrirão sem o menor receio, e entrando com os Mouros, fez escravos e desasete pessoas, grandes, e pequenas, que na casa havia, e as embarcou nas fragatas; e com esta preza muito alegres os Mouros entrarão em Tunes no ano de 1743. Estava já entaõ em Tunes o P. Prégador Geral Fr. Francisco Ximenes, Religioso da nossa Ordem da Santissima Trindade, e desta Provincia de Castella, que na Filosofia foy meu discipulo; o qual mivido da sua ardene caridade, e do constante, e fervoroso zelo, que sempre teve de passar a Africa; naõ sómente ao glorioso emprego de resgatar os cativos, mas tambem de assistir alli para exercitar-se na hospedagem, cuidado, e consolaçaõ dos Christaõs enfermos, havia erigido, e fabricado no mesmo anno de 1743 […] hum Hospital, que dedicou a nosso Patriarca S. José da Mata, em que se recebem, e curaõ com muita caridade todos os escravos Christaõs de qualquer especie que seja a enfermidade, que padeçaõ […]. Tanto que chegaram a Tunes os desgraçados cativos, forão logo vendidos a diferentes Patrões: a Constança, seus pays, dous irmãos, e huma irmão comprou hum Mouro muito rico, e poderoso, chamado Mahameticha, ao qual depois cortáraõ a cabeça, e com ella posta na ponta de huma lança correrão os Mouros as ruas de Tunes. Mas antes tinha vendido a Constança com seus pays, e irmãos a Casimo Ben Sultão, escrivão grande do Bey no ano de 1744. Era este Casio dos piores Patrões, que experimentáraõ os cativos neste Reino. Costumava ter algumas vezes mais de cem escravos; e ainda que era rico, e poderoso, os trazia sempre despidos, e famintos, efeito de sua grande avareza, que ainda que grande, naõ era maior que sua sensualidade, pois ainda os meninos Christaõs cativos naõ estavam livres das torpes solicitações do seu brutal appetite. Tinha Casimo hum filho chamado Mahamet, bárbaro, cruel, e luxurioso como seu pai; pois naõ se satisfazendo com três mulheres próprias, como elles as appelidaõ, e outras renegadas concubinas, solicitava também as de mais cativas Christãs, para que apostatassem da Fé, e se fizessem Mouras, ou para cazar-se com ellas, ou para que fossem suas concubinas. […]. No ano de 1750. mandou o Bey prender Casimo Ben Sultão, Patrão de Constança, e o condenou a pagar cem mil escudos de ouro. Casino morreo de pesar de lhe tirar o seu dinheiro pouco tempo depois, e Mahamet seu filho herdou a Constança, e aos demais cativos de sua família. Tanto que Mahamet se vio Patrão, e Senhor della pretendeo conquistar sua castidade, e que renegasse da nossa santa Fé […]. Mas porque o Padre Xímenes, e seus companheiros os Religiosos sabião certamente que o querer Mahamet que lhe levassem a Constancia, era para obrigala a renegar da Fé Católica, e violentamente estrupala, se resistia; pois para isso tinha prevenidos os seus eunucos negros, e advertidos de que, tanto que chegasse Constança, a metessem na camera, que tinha fora, aonde as mulheres habitataõ; e que á violência, e força naõ podiaõ resistir, recorreram com grande devoção, e confiança a implorar o favor divino, para que a livrasse de tal perigo. […] Confuso Mahamet da valorosa resistencia de Constança, colérico lhe deo algumas bofetadas, e se retirou afrontado, dizendo-lhe: ‘Por mais que faças, ou digas, queiras, ou naõ queiras, esta noite serás minha mulher; e para que naõ tenhas modo de resistir ao meu gosto, mandarei aos meus Eunucos que te atem’. […] O P. Ximenes, (ainda sem ter noticia do novo, e perigoso risco, em que se via Constança) conhecendo a vil desordenada paixão de Mahamet, e que por este motivo naõ havia de poder effeituar com elle o resgate de Constança, determinou no mesmo dia de tarde tratalo com o Bey seu pai, parecendo-lhe, que com elle o poderia conseguir; mas nas pode dar-lhe audiência por negócios, com que estava ocupado. Ao outro dia tornou o P. Ximenes com o P. Prégador Fr. Manoel Merino ao Palacio do Bardo; tratou com o Bey do resgate de Constança, e o ajustou em novecentos pezos. […] Tanto que teve o dinheiro junto, foi com o P. Merino entregalo ao Bey; e estando-o contado, entrou Mehamet noticioso já do ajuste, que havia feito o P. Ximenes, com seu pai, tal colérico, e furioso, que se enfadou com o Bey, e pouco faltou para se desfazer o contrato […]. Mas em fim, ainda que a opposiçaõ de Mahamet impedio por algum tempo a que largassem a resgatada, e a entregassem aos Padres, pois tendo feito o ajuste, e dado o dinheiro pela manhã, naõ receberão a Constança senaõ perto da noite, no qual tempo estiveram sem comer cousa alguma, por se naõ apartarem dali sem ella; o Bey disse, que devia cumprir o que havia contratado, e mandou que trouxessem a Constança, e a entregassem aos Padres; […]. Esperava-se occasiaõ opportuna, para que Constança se embarcasse para Marselha. Mediado Novembro julgou havela achado, mas enganou-se. Huns mercadores Franceses o avisaram, que o pique S. Jozé, ancorado na bahia da Goleta, estava para fazer-se á vela, e ir a Marselha. Avistou-se com o Patrão delle, e ajustou o frete para o Padre Fr. Manoel Merino, Religioso Trinatario, e Constança Coliva: e havendo-lhe feito as Provisões necessárias, se embarcáraõ, e esperáraõ por vento favorável para a Provença. No dia 26. de Novembro se serenou a tempestade, que se levantara, e o vento de algum modo favoreceo demasiadamente esta navegação, que havia de acabar pelo naufrágio destes dous desgraçados navegantes, pois chegaram no dia 28. ás Ilhas de Chatodif,e [sic] de Pomegue. A tempestade naõ se havia soccegado ao anoitecer deste dia, senaõ para tornar com mayor violência do seguinte. E Deus que, para chegar ao fim das suas disposições, permite que os homens se governem pelos seus poucos acertados ditames, permitio que o Capitão das Ilhas consentisse que o Patraõ do pique deitasse a lancha ao mar, e nela embarcasse os dous passageiros, para levá-los ao Lazareto, aonde haviaõ de fazer quarentena. O Padre Merino, e Constança entráraõ com sua limitada equipagem nesta embarcação, carregada de muitos fardos de esponjas, e ás oito da manhã, cinco pouco destros, e experimentados marinheiros se occupáraõ no governo della para conduzir a carga ao lugar destinado. E ou fosse, porque o mar estivesse ainda alterado da tempestade antecedente, ou porque tornasse de novo o temporal, cahiraõ tal repetidas as ondas na embarcação, e as esponjas tomáraõ tanta agora, que os marinheiros vendo-se perdidos pedia assistência com grandes vozes. […]”.
No «Catálogo da Colecção de Miscelâneas», publicado pela ‘Biblioteca Geral da Universidade Coimbra’ dá-se a seguinte nota: “Há uma edição de Lisboa, 1735, com algumas variantes e de onde consta, no rosto, o nome de quem a compoz, Fr. Paulo Giraud, quem a mandou de Madrid, Fr. Agostinho Sanches e quem a traduziu em Portuguez, Pedro Alemo Larvancha.
Opúsculo bastante raro, dado ao prelo sem o nome do autor ou do tradutor.
Capa da brochura de recente manufactura. Com restauros marginais.