A elegância e aprumo do espaço público da Livraria Manuel Ferreira, no n.º 21 da Rua Formosa, contrastam com a “desorganização organizada” do seu armazém. Mas em ambos os locais, paira no ar o mesmo ambiente de paz e tranquilidade, resultante de uma profunda sensibilidade e respeito pelo livro. “Livros cerrados não fazem letrados” é o lema desta casa fundada há 41 anos. Mas a sua história recua muito mais no tempo, como nos contou Manuel Ferreira, abrindo um pouco o livro da sua própria vida.
“Livros cerrados não fazem letrados”, lemos no ex-libris de Manuel Ferreira, desenhado por José Rodrigues. Dificilmente se encontraria uma expressão mais adequeada a este alfarrabista. Possuindo apenas a quarta classe como habilitações académicas, é portador de uma sólida cultura e formação humanista, que transparece naturalmente no contacto pessoal, fruto da sua íntima relação com os livros, companheiros ideais e inseparáveis de toda uma vida.
“Falo tanto com os vivos e com os mortos que estão dentro dos livros, que muitas vezes até já sinto alguma incapacidade para falar com os vivos fora dos livros… É claro que estou sempre disponível para quem me aparece, mas prefiro estar no meu gabinete com os livros, eu e eles, em absoluta solidão”, confessa o alfarrabista.
Todavia, no local de trabalho, onde fomos ao seu encontro, Manuel Ferreira revela-se um óptimo conversador, de tal forma que nem damos pelo passar das horas.
AVENTURAS
A conversa recuou à época em que Manuel Ferreira, com apenas 11 ou 12 anos, tinha já a paixão da leitura. Lia, então, os livros de aventuras próprios da sua idade. Aos poucos, o tempo das aventuras foi passando à história, dando lugar a novas exigências culturais. Começava uma aventura maior: a de ser livreiro.
“Nasci de uma família muito pobre que não me podia comprar livros. Por isso, desde criança, eu adquiria-os, usados, na Livraria Académica, na altura do seu antigo proprietário, o Sr. Guedes da Silva. Comprava-os e, depois de lidos, vendia-os, na casa de móveis antigos que o meu pai tinha, na Travessa de Cedofeita. Eu aproveitava a montra da loja para expor os livros e vendê-los. Sempre gostei de aprender e de estudar. E aos poucos, não era só a leitura que me interessava, mas o conhecimento do livro em geral, sob o ponto de vista tipográfico, bibliográfico, artístico, etc. Interessei-me pelos muitos encantos que o livro encerra. Foi esse o embrião da minha vida de livreiro”, recorda.
Com o passar dos anos, face aos conhecimentos e contactos estabelecidos, foi convidado para ser sócio de um projecto no ramo livreiro, o que recusou. Continuou a trabalhar com o pai, na loja de móveis, onde comprava e vendia livros, até que, quando contava 28 anos de idade… “O meu pai – sabendo que a minha paixão era os livros e não os móveis, e aproveitando uma das raras ocasiões em que eu estive doente de cama, encontrando-me em convalescença – apareceu-me com um taxi à porta de casa, e disse-me: “anda comigo ver um sítio para tu te estabeleceres. E lá fomos ao nº 19 (hoje 21, por se alterou a posição da porta com a montra) da Rua Formosa. Meu pai forçou-me a ficar com a livraria. Forçou-me no bom sentido, porque ele sabia que isso ia ao encontro do meu gosto mais verdadeiro.
Nascia assim, em 1959, a Livraria Manuel Ferreira. Uma casa formosa, a fazer jus ao nome da rua, que tem dedicado uma especial atenção à publicação de catálogos e boletins bibliográficos. Paralelamente, vem organizando leilões de importantes bibliotecas particulares (entre as quais, as que pertenceram a Kol de Alvarenga, ao camilianista Ávila Perez, Salema Garção, Alfredo Lucas, Reynaldo dos Santos, Francisco Ferrão de Castello Branco, Henrique Botelho e muitas mais), sendo que, nessa actividade, se apresenta como “a única existente na cidade do Porto”.
Profundamente sensibilizado para a importância histórica e cultural de tudo o que é documento escrito, Manuel Ferreira recusa, em casos especiais, a venda de certas raridades a particulares, ainda que em detrimento dos seus interesses comerciais. Foi o que aconteceu com um valioso acervo documental dos séculos XIV, XV, XVI, que a livraria optou por transaccionar com a Câmara Municipal do Porto, e que hoje faz parte do Arquivo Municipal, encontrando-se já totalmente informatizado para consulta pública.
“Quando esse espólio me veio parar às mãos, pressenti que era muito importante. Em casa, analisámos os pergaminhos e verificámos que tinham uma unidade muito grande. totalizator sportowy automaty online Haviam pertencido a um homem com muita influência, que exerceu cargos de grande prestígio e responsabilidade – João Martins Ferreira, que viria a ser o primeiro nobre a permanecer no Porto. Esses documentos contêm dados importantíssimos para o conhecimento da história da cidade. Por isso, recusei-me a vender a colecção a um particular, apesar de ter tido óptimas propostas, muito vantajosas”.
É com natural orgulho que Manuel Ferreira fala desta colecção que, agora, nas mãos dos estudiosos, fará incidir uma nova luz sobre o passado da urbe portuense.
Quanto ao passado da livraria, esse, cruza-se com o da própria cidade. Fundada antes do 25 de Abril, a casa não escapou à desconfiança do regime fascista, tanto mais que a sede da Pide se situava ali perto, na Rua do Heroísmo, e que os livros proibidos eram muito procurados pelos clientes da livraria. Mas Manuel Ferreira, que nunca se interessou activamente pela política, conseguiu com subtileza, uma forma e contornar os olhares censórios: “Eu vendia livros que estavam indexados e fui muitas vezes vigiado pelos agentes da PIDE. gry kasyno online bez rejestracji Se porventura eles descobriam na livraria algum livro proibido, eu entregava-lhes a obra e desculpava-me, dizendo que ela estava ali por estar, por ignorar o seu conteúdo. Cheguei a aproveitar-me da circunstância para lhes pedir uma relação de todas as obras proibidas. Eles deram-me e isso servia-me exactamente para vender livros censurados, sem os expor e sem correr o risco de suspeitarem de mim. Posso não ter sido inteiramente leal com eles, mas eles também não eram leais comigo, portanto, estamos pagos…”
Porém, certa vez, o caso foi mais complicado. “Temi ser preso, por causa de um leilão, em que vendi o livro “Portugal Oprimido” do capitão Queiroga, que vivia no Brasil e que era um grande opositor ao regime. Limitei-me a descrever o livro, com a maior descrição possível, sem qualquer espécie de comentário, mas na assistência estava alguém que escrevia num jornal afecto ao governo, que me denunciou, alegando que o livro tinha sido vendido com os sorrisos cúmplices do organizador / vendedor. A notícia veio no jornal e então a polícia foi à agência dos leilões perguntar por mim. Receei que me prendessem – nesse tempo não era preciso muito para ser preso”.
A pessoa que comprou o livro, “um médico que ainda é vivo, esse sim, manifestamente da oposição”, foi obrigada a entregar a obra aos agentes da polícia. Mas não sem lhes dizer primeiro: “Podem tirar-me o livro que eu, dentro de poucos dias, já o tenho outra vez, porque mando vir um exemplar do bRASIL”.
Fruto proibido é o mais apetecido, diz o ditado. Talvez por isso, naquela época, as livrarias eram muito frequentadas e os livros censurados os mais procurados. Manuel Ferreira concorda com a opinião, aparentemente paradoxal, de que a actual crise na leitura se deve, em grande parte, ao facto de não haver obras proibidas… “A ausência de repressão estiolou, castrou o criativo dos autores que tinham que escrever com muita subtileza para dizerem o que queriam. E o público estava preparado para perceber a mensagem subtil dos livros, sabia lê-los nas entrelinhas”, comenta.
TEMPOS DIFÍCEIS
Com o 25 de Abril de 74, começou um novo período na história da livraria. Um período “muito crítico com a mudança de regime, pois ninguém sabia que rumo o país ia tomar”. Manuel Ferreira recorda que os próprios clientes deixaram de comprar livros, porque se adquirissem uma obra cara, poderiam suscitar a ira anti-capitalista. “Grandes bibliotecas foram vendidas nesse período e outras foram inteirinhas para o estrangeiro, de modo a evitar que fossem tomadas ou que a sua venda fosse inviabilizada. O mesmo aconteceu com colecções de arte. Houve grande fuga de valores para fora do país; uns voltaram mais tarde, outros não”.
Nessa altura, Manuel Ferreira chegou a ponderar a hipótese de ir para o Brasil. Mas preferiu ficar, mesmo correndo riscos. “Fiquei e não me arrependi disso. Dirigi as minhas disponibilidades financeiras – poucas, porque um livreiro pode ter muitos livros, mas tem sempre pouco dinheiro – no sentido de comprar as bibliotecas e, entretanto, as coisas equilibraram-se politicamente, os compradores voltaram, nasceram novos clientes e a minha vida pode continuar sem grandes sobressaltos”. Actualmente, a frequência de público vai sendo cada vez menor. kasyno online szybkie wyplaty O tempo em que os bibliófilos faziam da livraria um espaço de tertúlia, onde se conversava sobre livros e outros assuntos, é pertença do passado.
“A vida complicou-se, há cada vez menos tempo livre para visitar livrarias e surgiram outros aliciantes, como a televisão e os vídeos que vieram ocupar as horas antes destinadas à leitura”, diz Manuel Ferreira, no seu modo tolerante de justificar o mundo actual.
Para compensar a diminuição de visitantes, a livraria optou pela organização de catálogos, sua grande fonte de vendas, e sempre que possível marca presença em feiras do sector, como foi o caso da Expo-Livro, organizada em Outubro passado, pelas livrarias Latina, Leitura e Lello.
“Foi uma iniciativa muito importante e espero que tenha continuidade em anos futuros. Nas feiras do livro realizadas no Pavilhão Rosa Mota, as livrarias são quase sempre postas de parte, para estarem presentes apenas os editores e compradores. Ora, o elo ideal e natural da ligação entre editor e comprador, é o livreiro. Nesse aspecto, há uma concorrência desleal e uma subalternização da importância do livreiro”.
Manuel Ferreira não esconde alguma apreensão quanto ao futuro das livrarias, face ao surgimento de grandes cadeias comerciais, como a Fnac agora a funcionar em pleno centro da cidade. “A livraria é um espaço único, onde o comprador tem o direito de dialogar e de se informar junto de alguém que lhe sabe falar de livros e o pode ajudar a comprar. Mas é muito difícil fazer frente ao grande capital. No Porto, há livrarias belíssimas, como a Lello – que, além da sua beleza, tem um passado editorial formidável -, a Latina, local de encontro precioso na história cultural do porto, e a leitura, onde Fernando Fernandes, um Senhor com todas as letras em maiúsculas, que sabe profundamente de livros, fez muito por esta terra. Se podermos fazer alguma coisa para que esses espaços não se percam, será um grande bem para a cidade”.
PORTO 2001
O Porto surge amiúde ao longo da conversa, reflectindo a dedicação, o interesse e a ternura de Manuel Ferreira pela sua cidade, Capital Europeia da Cultura em 2001. Irá esta lembrar, de alguma forma, os alfarrabistas da cidade? Não, respondeu. “Tenho muita pena, mas não fui contactado para nada relacionado com o Porto 2001. Penso que poderia ser feita uma feira de alfarrabistas, onde apresentássemos o que tivéssemos de melhor. Era uma maneira de dizer que o Porto está vivo no que respeita ao livro antigo. Pela nossa parte, tencionamos, em 2001, publicar um catálogo de livros sobre o Porto”.
Manuel Ferreira prefere falar de livros e leituras, a falar de si mesmo, “fugindo” delicadamente de algumas perguntas sobre a sua pessoa. Foi, pois, através da consulta de um catálogo da Feira Internacional do Livro Antigo, promovida há seis anos, no Porto, pela Associação Portuguesa de Livreiros Alfarrabistas, que soubemos que, em 1992, Manuel Ferreira recebeu o título de Comendador. E, pela leitura de um texto de Júlio Couto, inserto no mesmo catálogo, ficámos, também, a saber, qual a opinião que tem sobre si quem bem o conhece: “A sua lhaneza de tacto, a seriedade sempre posta nos seus negócios, a maneira afável de conviver com quem lhe entra portas adentro, foi-lhe aumentando o número de clientes e amigos, entre os quais se contou José Régio, Alberto Uva e Alberto Serpa, de quem foi o organizador de ambos os valiosos espólios (…)”.
Trata-se, sem dúvida, de um livreiro que honra o nome de Al-Farabi (filósofo árabe, do século X, que se notabilizou como comentador de Aristóteles), do qual deriva a palavra Alfarrabista.
Passeando entre os milhares de volumes existentes no local de trabalho de Manuel Ferreira, a sensação é de estar a caminhar por um espaço sagrado que inspira respeito e devoção. Não surpreenda que seja ali, entre os livros, que o distinto guardião desse templo de saber quer passar o resto dos seus dias.
“Aprendi tudo com eles. Gostaria de morrer a trabalhar com os livros; de não ter tempo para estar vivo sem eles”.