Nunca foi nada assim à praça. São centenas de lotes que contam a história das revistas literárias em Portugal. Peça qualquer tesouro e estará com certeza na biblioteca de Alfredo Ribeiro dos Santos, um viciado em papéis impressos desde a adolescência.
A biblioteca do médico Alfredo Ribeiro dos Santos, que inclui aquela que é, provavelmente, a mais importante colecção privada de revistas literárias portuguesas, vai ser leiloada a partir de amanhã, e durante oito noites consecutivas, na Junta de Freguesia do Bonfim, no Porto, onde já hoje se encontra exposta.
O acervo foi dividido em 3561 lotes, mas este total não dá sequer uma ideia aproximada da quantidade de espécimes bibliográficos em causa. Basta pensar, por exemplo, na revista Seara Nova, cujos 1600 números correspondem a um só lote.
Um testemunho eloquente para se avaliar da relevância desta colecção é o de Daniel Pires, autor de um gigantesco Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX, que admite ter tido de recorrer com frequência à biblioteca de Ribeiro dos Santos para consultar números de revistas em falta na Biblioteca Nacional. E também lá descobriu algumas que pura e simplesmente não existem em nenhuma biblioteca pública, como a Outro Ritmo, que se publicou no Porto no início dos anos 30 e que se pode considerar uma precursora do neo-realismo.
Embora o conjunto inclua milhares de primeiras edições, algumas raríssimas, de obras de poesia, ficção e ensaio, são mesmo as revistas literárias que tornam este leilão um acontecimento único. O livreiro e alfarrabista Manuel Ferreira, a quem foi confiada a organização do leilão – para o qual elaborou um primoroso catálogo em dois volumes, com a descrição minuciosa de todas as peças -, garante não ter memória de alguma vez ter ido à praça uma colecção de revistas que pudesse comparar-se com esta. E sabe do que fala, já que, nas últimas décadas, praticamente não houve nenhum grande leilão de livros no Porto que não tenha sido ele a organizar, incluindo em 1988, o da valiosíssima biblioteca do poeta Alberto de Serpa.
Há muito que a cidade não assista a um leilão desta envergadura, e, mesmo para os que não queiram, ou não possam, comprar nada, o espectáculo promete. Um bom leilão de livros é pelo menos tão emocionante como uma partida de poker, ainda que se devam assinalar duas ligeiras diferenças: o leiloeiro costuma levar a mal que se faça bluff e, nos leilões, quem ganha é que deixa ficar o dinheiro na mesa.
O extraordinário conjunto de revistas e livros que agora irá ser disperso começou a formar-se quando Ribeiro dos Santos, hoje com 90 anos, era ainda adolescente. Ou seja, pôde usufruir de uns bons três quartos de século para ir pacientemente enriquecendo a sua biblioteca, que fez sempre questão de colocar à disposição dos investigadores. E foram muitos os que visitaram, ao longo dos anos, a sua casa da Rua da Constituição, no Porto, que deve ser a única moradia da zona com uma porta de segurança entre o rés-do-chão e a cave. Era aí, na cave, que o coleccionador guardava o seu inestimável tesouro de papéis impressos. Para se ter uma ideia do que possa ser o valor comercial da sua biblioteca, refira-se que só a raríssima colecção completa da revista Presença pode bem vir a ser arrematada por algumas dezenas de milhares de euros.
Pioneiro em Portugal da especialização médica em anestesia, Ribeiro dos Santos foi sempre um bibliófilo apaixonado, mas, ao contrário de outros, não se limitou a coleccionar. Ele próprio se serviu da sua biblioteca para escrever e publicar numerosos livros e artigos, sobretudo dedicados ao movimento cultural da Renascença Portuguesa e a várias das suas figuras mais influentes, como Leonardo Coimbra, de quem foi aluno no liceu, Jaime Cortesão, que ainda hoje considera a sua grande referência, ou Teixeira de Pascoaes.
Prefácio de Mário Soares
O catálogo que acompanhará o leilão abre com um prefácio de Mário Soares, no qual este descreve Ribeiro dos Santos como alguém que “deixou sempre, por onde passou, um rasto de simpatia, de humanidade, de aprumo pessoal e cívico”. Conheceram-se os dois no Movimento de Unidade Democrática (MUD), há mais de 60 anos, e voltaram a encontrar-se, recorda Soares, “em todos os grandes momentos da Oposição Democrática”, designadamente nas candidaturas de Norton de Matos e Humberto Delgado. O ex-presidente da República elogia ainda a “magnífica lucidez” que o seu amigo conserva aos 90 anos. De facto, não é qualquer um que se abalança, com a sua idade, a escrever uma volumosa História Literária do Porto através das Publicações Periódicas. O livro está pronto, tem largas centenas de páginas, e deverá ser editado em breve.
É claro que não foi sem alguma emoção e tristeza que o bibliófilo aceitou separar-se de uma colecção que lhe levou toda uma longa vida a construir. Mas até essa decisão difícil acaba por testemunhar em favor da sua lucidez. gry kasyno polskie “Vejo cada vez pior”, explica, “e já não conseguia tirar rendimento da biblioteca”. Por outro lado, sabe que os seus descendentes não herdaram a sua pulsão bibliófila. E, finalmente, admite simpatizar com “a solução do leilão”, já que, argumenta, ele próprio passou a vida a licitar em leilões, e tem assim a garantia de que as suas revistas e livros irão parar às mãos de pessoas que os desejam tão desesperadamente como ele um dia os desejou.
E um leilão, sobretudo quando confiado a um livreiro com a reconhecida competência de Manuel Ferreira, tem uma vantagem inestimável. É que um catálogo bem feito, nota Ribeiro dos Santos, “é um modo de preservar a memória do que foi uma biblioteca”. Na verdade, este catálogo é até mais do que isso: é um importante instrumento de consulta bibliográfica para os historiadores da literatura portuguesa do século XX.
As mais cobiçadas
Entre as largas centenas de colecções de revistas que irão ser leiloadas nos próximos dias, algumas das mais cobiçadas são as que estão ligadas ao movimento modernista: a mítica Orpheu, de que se publicaram apenas dois números em 1915 (um terceiro, já no prelo, acabou por não sair), a Centauro, de 1916, onde Camilo Pessanha, quatro antes da edição de Clepsidra, publicou um vasto conjunto de poemas, a Exílio, também de 1916, ou ainda a célebre Portugal Futurista, do ano seguinte, na qual colaboraram Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros.
Das revistas lançadas nos anos 20, a mais notável, para lá da já referida Presença – que durou até 1940-, talvez seja a Contemporânea, quer pela colaboração literária, quer pela sua beleza gráfica. O primeiro número saiu, aliás, ainda em 1915, mas não teve continuidade e o título só foi recuperado em 1922. O facto de a colecção de Ribeiro dos Santos incluir esse raríssimo exemplar experimental aumenta consideravelmente o seu valor.
A par destas revistas, Daniel Pires destaca ainda, até pela sua longevidade e pela enorme influência cultural e política que tiveram, publicações como a Seara Nova, que se publicou regularmente desde 1921 até 1979 – e irregularmente até mais tarde -, ou a Vértice, indispensável para a história do neo-realismo, com mais de 600 números publicados desde 1942.
Ribeiro dos Santos admite que a pérola da sua colecção possa ser a Presença, mas a revista que mais acarinha é a Águia, porta-voz do movimento da Renascença Portuguesa, que foi dirigida, entre outros, por Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra, e cujas cinco séries abarcam um período que vai de 1910 a 1932. É das revistas que mais dificilmente aparecem completas. milenium zaklady sportowe oferta Na colecção da Biblioteca Nacional, faltam vários números. A de Ribeiro dos Santos não só está completa, como inclui um número da quarta série virtualmente impossível de encontrar, porque nunca chegou a ser distruído. zakłady online legalne
A primeira revista literária
A maior parte destas revistas são já do século XX, mas o conjunto envlui várias do século XIX, e até uma série completa da Gazeta Literária do cónego Francisco Bernardo de Lima, de que se publicaram 32 números em 1761 e 1762, e que é considerada a primeira revista literária portuguesa. Uma respeitável e veneranda folha, que não deve ter apreciado muito os anos de forçada convivência, na mesma cave, com uma publicação de propósitos tão manifestamente ímpios como Arteneo – A Revista Filha da Puta, dada à estampa em 1983. Não, Ribeiro dos Santos nunca foi um conservador. Quantos cavalheiros de 90 anos têm em casa as obras do marquês de Sade, ou uma edição francesa de Emmanuelle, publicada em 1968, quanto este moderno clássico do erotismo ainda não tinha sido descoberto pelo cinema?
Genuíno leitor
Apesar da quantidade e qualidade dos livros que integram este leilão, eles confirmam que o interesse central de Ribeiro dos Santos foram as revistas. Há obras raríssimas, mas nota-se a ausência de primeiras edições de particular peso simbólico, como a da Mensagem, de Pessoa, que um grande coleccionador de livros portugueses dificilmente suportaria não ter. É verdade que Ribeiro dos Santos possui a segunda edição, editada pela Agência Geral das Colónias em 1941, que é provavelmente mais rara do que a primeira, além de ter ainda os invulgaríssimos opúsculos de poesia inglesa que Pessoa editou, em 1921, com o título English Poems 1 e 2.
Este acervo de livros prova também que, ao contrário de muitos coleccionadores, o médico do Porto foi um genuíno leitor. As suas preferências iam claramente para a poesia, embora também sejam de destacar as colecções de primeiras edições de romances de autores como Ferreira de Castro, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Vergílio Ferreira, José Rodrigues Miguéis ou Agustina. E um notável conjunto de ficção e poesia neorealista, incluindo autores hoje muito esquecidos, que, junto com diversas revistas e jornais ligados ao mesmo movimento, poderia interessar ao Museu do NeoRealismo.
Na poesia, atingirão decerto boa cotação livros como a Clepsidra de Pessanham Tributo, que Miguel Torga ainda assinou como Adolfo Rocha, as muitas edições originais de António Botto, incluindo a das célebres Canções, ou a primeira edição de Indícios de Ouro, de Sá-Carneiro. Valiosíssimo é também o núcleo de obras de Almada Negreiros, que inclui, para citar apenas alguns títulos, k4 Quadrado Azul (1917) e A Invenção do Dia Claro (1921), além da mítica edição original do Manifesto Anti-Dantas (1915), para cuja raridade se diz que terá contribuído o açambarcamento de exemplares pelo próprio Júlio Dantas.
Tendo em conta que o catálogo desta colecção ocupa umas 700 páginas em letra miudinha, e que, a par das revistas, a poesia é o seu prato forte, só é possível dar alguns exemplos avulsos. Ainda assim, vale a pena mencionar os conjuntos de primeiras edições de Gomes Leal, Pascoaes, Régio e António Pedro ou António Maria Lisboa, e ainda títulos especialmente raros de autores mais recentes, como Pureza, obra de adolescência de Eugénio de Andrade, Poesia, o primeiro livro de Sophia, Aquele Grande Rio Eufrates, que revelou Ruy Belo, ou o raríssimo livro de estreia de Herberto Helder: O Amor em Visita. Numa das suas crónicas, Fernando Assis Pacheco lamentava-se de ter oferecido um exemplar deste folheto a alguém que, segundo ele, veio a provar que não o merecia. É por isso que Ribeiro dos Santos gosta de leilões: quem está disposto a pagar os olhos da cara por um livro, sempre dá algumas garantias de que o saberá apreciar.