Raridades bibliográficas, livros simplesmente lesados, de todas as espécies e tamanhos, abarcando, do volume erudito à história em quadradinhos, até à vulgaridade da fotonovela, de tudo um pouco, para o gosto diversificado de uma clientela bem diferenciada, é possível encontrar no espólio, apetecido por muitos, de um bom alfarrabista.
Mas, afinal, o que é um alfarrabista, como surgiu essa actividade, quem o procura, que bastidores dinamizam a profissão, suas perspectivas actuais, que tesouros esconde?
Um mundo aliciante, cujo véu tentamos levantar, ao de leve, embora, conversando com alguns dos poucos livreiros que, estabelecidos no Porto, servem e negoceiam com, também, também, meio mundo de interessados.
Alguns aspectos fundamentais da própria concepção de alfarrabista, apontam, principalmente, considerando o público, para duas ordens de factores: proporcionar livros a preços inferiores aos do seu custo normal nas livrarias e possibilitar a aquisição de volumes já esgotados no mercado, servindo coleccionadores, interessados em raridades ou não.
Avaliações, pedidos de opinião, leilões, busca de investimentos (aquisição de livros, tendo em vista que, dentro de certo período, o preço aumentará, compensando o tempo de capitalização) procura da raridade valiosa, reconstituição do património cultural, função de aculturação, entretenimento, muito pode envolver a actividade de alfarrabista.
TODOS OS GÉNEROS
Há 36 anos a lidar com livros, cerca de 40 catálogos elaborados por si para leilões da especialidade e nove outros catálogos de livros esgotados apresentados para venda própria, o Sr. Manuel Ferreira falou-nos da sua experiência como alfarrabista.
Em sua opinião, esta actividade, que sofreu um decréscimo logo após o 25 de Abril, devido à alteração profunda da vida portuguesa e correspondente instabilidade de perspectivas, regista, actualmente, uma maior procura de livros em geral, mesmo em relação a épocas anteriores. Muita gente nova, segundo nos afirmou, tenta fazer as colecções, mesmo no campo das primeiras edições.
«Não se pense no entanto, que todos os coleccionadores de edições raras ou esgotadas são pessoas ricas», acrescentou; «pois, muito pelo contrário, grande parte deles não vive num mar-de-rosas, têm dificuldades e privam-se de muita coisa por amor aos livros, desde o cigarro ao fato no fio».
Com poucos estudos oficiais, o nosso interlocutor, que aprendeu com os seus livros tudo o que sabe, contou-nos um lamiré da sua história. Garoto, gostava de ler aquilo que há hábito nessas idades. Sem dinheiro, comprava livros usados. Querendo mais livros, punha os já lidos à venda no estabelecimento de móveis, também usados, que o pai possuía no Porto. «Presumo que devo ter ganho dinheiro nalgum livro e isso me tenha estimulado…Hoje sinto-me perfeitamente feliz no meio dos livros.
No seu estabelecimento apareceu todo o tipo de obras, desde um valioso volume, recentemente adquirido (um trabalho sobre Portugal, de Viviane, com gravuras, no valor aproximado de 100 contos), até às historinhas em banda desenhada.
«Pode aparecer um miúdo, que queira apenas livros aos quadradinhos», mas a quem pode acontecer como a mim» explicou, sorrindo, antes de referir que acredita na função de preservar os valores culturais que podem desaparecer, se não houver um agente que procure encaminhá-los para o público interessado, estudioso…
Um problema que se levanta, naturalmente, a propósito dos valores culturais raros que neste campo possam existir é o de saber se tais preciosidades deverão ser usufruídas por todo o público que as queira consultar e apreciar, ou se é lícito permitir a sua aproximação privada.
Que as bibliotecas, museus e outros serviços públicos devem ser o mais completos possível, parece não oferecer dúvidas para a grande maioria das pessoas.
Resumindo as opiniões recolhidas junto de alfarrabistas sobre o assunto, foi-nos declarado, por um lado, que a apropriação de volumes deve ser feita em concorrência com as entidades privadas e não por expropriação do poder: por outro, é, obviamente, indispensável, para o efeito, o interesse e possibilidades materiais das entidades públicas competentes, o que nem sempre se verifica.
Como nos referiu um outro conhecido alfarrabista do Porto, o Sr. Nuno Canavez, depois do 25 de Abril, bibliotecas de universidades e algumas câmaras municipais começaram a procurar obras literárias valiosas, para enriquecimento cultural do meio onde se inseriam, o mesmo não se podendo afirmar, todavia, das entidades fundamentais neste sector, o que facilita, já se vê, a «fuga» de valores culturais para o estrangeiro, sempre possível, atendendo às maiores possibilidades económicas.
Afirmou-nos, no entanto, que o aparecimento de uma raridade por tuta-e-meia, como anteriormente acontecia, já não é, hoje em dia, vulgar.
O ANTIGO E O BOM
«Aparecem, por exemplo, pessoas que julgam que o antigo é sinónimo de bom, o que, é evidente, muitas vezes não acontece», declarou.
Existem, por exemplo, autores modernos, como um Torga ou um Régio, cujas primeiras edições de determinadas obras atingiram preços altíssimos, que clássicos de nomeada como um Padre António Vieira, Padre Manuel Bernardes, Diogo Bernardes, Alexandre Herculano ou um Junqueiro (extremamente esquecido) nunca alcançaram.
Isto, por diversos motivos, desde a celebridade atingida, no momento, à limitação da tiragem. «Muitas vezes, os primeiros livros de alguns autores, depois de celebérrimos, não foram bem aceites, tornaram-se desactualizados, foram destruídos pelos próprios autores, especificou, acrescentando que o facto em si de autodestruição de obras lhe parece criticável, na sua essência. O que se realiza em determinada altura, em funções da época e das próprias limitações, por muitas repercussões que possa desenvolver, mesmo quando de novo confrontada, posteriormente, constitui sempre um documento importante, de que não se deveria privar os vindouros, obrigados, por sua vez, a conscienciosamente, apreciarem os valores em função da época da sua criação.
Novos interesses e ideias afundam e reerguem, em cada tempo, afamados e esquecidos de outras épocas e do momento.
Nuno Canavez continuou: «Autores célebres da actualidade não irão perdurar por muito tempo, enquanto, por exemplo, Eça de Queirós e Camilo continuam a ser muito procurados. Camilo, por exemplo, que pretendeu estudar a própria técnica do romance e a sua linguagem esplêndida, e, por outro lado, pelo popular, que encontra, nas suas obras, um entrecho muito próximo da mentalidade portuguesa».
Garrett, Antero de Quental, Sampaio Bruno voltam a ser procurados, não obstante, há 30 anos, terem sido relegados para segundo plano. Naquele alfarrabista, tomamos contacto com algumas raridades, umas á venda, outras sem preço, constituindo valores seus, de que não quer desfazer-se.
Uma «História Geral da Ethiopia», do Padre Balthasar Telles, (1.ª edição de 1660), no valor de 35 contos; «Orlando Furioso», de Ludovico Ariosto (de 1549 ilustrada com gravuras de uma nitidez notável), no valor de 50 contos; um livro sobre direito romano (Código de Justiniano, de 1536), com a particularidade de cada uma das suas centenas de páginas ter uma composição diferente (Sem preço); uma primeira edição comentada de «Os Lusíadas», por Manuel Correia (de1613), avaliada em 70 contos; um álbum de manuscritos, pertencente a um médico, com mensagens e composições poéticas de Sousa de Passos, Teófilo Braga, Castilho, Antero de Quental, Júlio Dinis (quinze anos), Latino Coelho, Bulhão Pato, Alexandre Herculano e outros, alguns deles, provavelmente, médicos (sem preço); um livro de poesia de Theofilo Folengo («Opus Macaromicorum»), segundo o Manuel de Brunet, exemplar extremamente raro, de 1521, especialmente pelo facto de se encontrar intacto, sem mutilação das notas marginais e possuindo, igualmente, um caderno, que faltam na maioria dos exemplares existentes, também de cotação inestimável.
Hoje, a aquisição de obras pelos alfarrabistas tem origem, geralmente, em leilões e bibliotecas particulares, sendo muito pouco frequente o aparecimento de alguém que pede, sem saber, uma ridicularia por preciosidade bibliográfica. Contou-nos, ainda, Nuno Canavez, que por um exemplar do «Só» (1.ª edição), lhe foi pedido, a título de exemplo, 500$00; o livro foi comprado pelo alfarrabista por 5 000$; hoje vale qualquer coisa como 25 contos.
“Deveria haver mesmo, disse a finalizar, uma escola de preparação profissional para alfarrabistas e livreiros em geral, habilitando-os a corresponder, cabalmente, à função cultural que podem assumir, pelas suas próprias atribuições.
O GOSTO E A PERIPÉCIA
Um outro alfarrabista, o Sr. Amadeu Marinho, preferiu narrar-nos algumas histórias da profissão, mais relacionadas com a parte espiritual da actividade do que com a sua função estritamente comercial.
Há quase 50 anos na profissão, o Sr. Marinho disse-nos que conhece logo quem ama o próprio livro pela simples forma como o manuseia. Pegar no livro pela “cabeça” folheando-o cuidadosamente, atesta o esmero e carinho do coleccionador.
Depois, foi o desfile de tipos bem caracterizados, dos “habitués” do alfarrábio aos conversadores brilhantes que entretêm e enriquecem a profissão.
Falou-nos do poeta Amadeu Santos, já de cabelos brancos e ainda de capa e batina, com a paixão dos livros. Um dia, ocasionalmente, o poeta apareceu indeciso entre deitar meias solas aos sapatos e encadernar os “Poemas Lusitanos” de António Ferreira. E Cristiano de Carvalho, trajando de negro, com bengala e laço à “La Vallière”, conversando e encantando. O poeta e diplomata brasileiro Rui Ribeiro Couto, um dos mais minuciosos amadores de livros, que os procurava um a um, de estante em estante, sentado num banquinho.
Há os que aparecem com um ficheiro dos livros ou assuntos que não possuem, os indivíduos que ao domingo, geralmente antes do almoço, fazem a sua “via sacra” pelas montras das livrarias, os que aguardam, ansiosamente, a reforma para poderem “falar” intimamente com os livros acumulados anteriormente e que nunca tiveram tempo de ler; o bibliómano que nunca chega a ler os volumes que acumulou anos e anos; e aquele miúdo que chega ao estabelecimento, pede um livro, lê-o, alheio a tudo o que possa acontecer, até chegar a hora do almoço, que reconhece apenas pelo “relógio” que tem na barriga e que, pelos vistos, trabalha certinho.
“O livro de quadradinhos, apesar de criticado, pode ser um elo imediato entre a criança e a leitura, estimulando-a com a cor, despertando outras actividades, pelo próprio desenho, cultivando, através das ideias que se podem colocar e ensinar através de cada quadradinho”, disse-nos também o Sr. Marinho, pouco antes de aparecer, no seu estabelecimento, o jovem Fernando Carlos, de 17 anos, empregado de mesa da indústria hoteleira, que ía comprar livros aos quadradinhos que lera em criança e agora tenta recuperar em colecção. Atualmente, o jovem lê livros de história, com gosto por leituras mais maduras.
Enfim, um mundo de excitações, de reflexos, um veículo de cultura, que aqui apenas se procura aflorar. Nas entrelinhas e para além delas, muitas outras ideias e problemas ligadas por um sentimento comum e imprescindível que os nossos tempos não podem ultrapassar; a necessidade de ler e criar hábitos de cultura, de acordo com as possibilidades e capacidades de cada um, na construção do Homem e no crescimento das nações. Apesar de tudo…
Texto de Júlio Santos Fotos de Bruno Neves